O livro aborda a ridicularização da ideia objetiva de verdade, com o retorno de teorias da conspiração e ideologias que questionam o conhecimento científico, num cenário em que emoções, crenças e subjetividade emergem, em detrimento dos fatos, da razão, da realidade e da ciência. Nesse contexto, entenda o negacionismo e as fake news em a Morte da verdade, a partir da resenha crítica apresentada a seguir.
Dados gerais:
A publicação é de autoria de Michiko Kakutani, crítica literária do The New York Times por mais de três décadas e Prêmio Pulitzer em 1998. A versão impressa da editora Intrínseca foi publicada em 2018 e tem 272 páginas, distribuídas por nove capítulos e uma introdução e epílogo.
Introdução de A Morte da Verdade: uma chave para entender negacionismo e fake news
Na introdução, uma citação de Hannah Arendt:
o súdito ideal dos regimes totalitários é aquele que já não percebe a diferença entre fato e ficção.
Sem dúvida, o que foi escrito no livro Origens do Totalitarismo em 1951 nunca foi tão contemporâneo e a evidência disso são a escala industrial em que são produzidas mentiras e fake News, o ataque às normas e instituições democráticas, a disseminação do ódio, a polarização, o sectarismo e a perda de noção da realidade. Assim, no referido cenário, medo e raiva substituem o debate sensato e a democracia se encontra ameaçada, pois a verdade é um dos seus pilares.
Segundo a autora, a ascensão do relativismo ocorre desde o início das guerras culturais, na década de 1960, em que se pregava o “evangelho do Pós-modernismo”, segundo o qual não existiriam verdades universais, apenas verdades pessoais. Ocorre que o discurso relativista foi “usurpado pela direita populista”, dentre os quais os criacionistas e os negacionistas climáticos. Embora não se possa evitar que os agentes públicos mintam, há como controlar “se eles devem responder por essas mentiras”, ela argumenta.
Logo, percebe-se uma chave para entender negacionismo e fake news, em A Morte da verdade, cujos capítulos são sintetizados a seguir. Além disso, veja no final o link para outro texto que aborda o tema.
Capítulo 1 – O declínio e a queda da razão:
Inicialmente, cabe considerar que o progresso exige esforços e dedicação continuados, caso contrário há risco de retrocessos. Entretanto, nem sempre as pessoas percebem a derrocada dos direitos, não obstante a acumulação de sinais apocalípticos que a precedem.
Por exemplo, na Ascenção de Hitler ao poder, a crença na liberdade e igualdade ancoradas na constituição parecia inabalável e as pessoas perguntavam: o que o novo líder da Alemanha poderia fazer para ameaçar tais conquistas? O que aconteceu depois é história.
Em seguida, o início de uma era de rejeição da ciência.
Capítulo 2 – As Novas Guerras Culturais:
De início, as Novas Guerras Culturais: instala-se o caos epistemológico. A verdade seria uma “questão de perspectiva e agenda política”. À semelhança da contracultura da década de 1960 que “rejeitou os ideais do iluminismo”, na era Trump os novos republicanos rejeitaram a racionalidade e a ciência.
Anteriormente, nos anos 1960, surgiu a visão radical de ciência como “construção ideológica destinada a servir interesses particulares”. Posteriormente, em tempos recentes, houve a apropriação dos argumentos pós-modernos por negacionistas e movimentos antivacinas.
Como resultado, produz-se a desinformação e o relativismo, numa epidemia de notícias falsas, que minaram a “confiança nas instituições e nas narrativas oficiais”.
Em suma, “O Pós-modernismo consagrou o princípio da subjetividade” e mesmo os argumentos científicos são vistos como um ponto de vista a mais que compete por aceitação dentre muitos, inclusive dos leigos e influenciadores. Então, surge o líder ou grupo dominante, que ditará a verdade.
Nesse sentido, leia-se 1984, de George Orwell.
Capítulo 3 – “MOI” e a escalada da subjetividade:
Nos anos 1970 eclode a “cultura do narcisismo”, “paralelamente à adoção do Pós-modernismo pela academia”. Acima dos fatos, a opinião pessoal, acima do conhecimento, a glorificação da opinião – em essência, são tempos de “autopavoneamento”.
Nesse tempo, há negligência quanto às responsabilidades cívicas e prevalecem os interesses pessoais e de grupos que desejam se afirmar. Além disso, a internet separa as pessoas em bolhas e dentro de cada bolha existe um jeito comum de pensar. Consequentemente, fatos e fantasias se misturam.
Além disso, há o fomento à dúvida. Supostos especialistas refutam as ciências e atacam a reputação de cientistas. Ao contrário do que seria sensato, pontos de vista minoritários recebem o mesmo peso que os consensos entre grupos de cientistas reputados, numa falsa equivalência.
Capítulo 4 – O Desaparecimento da realidade:
A realidade parece superar a própria imaginação dos escritores de ficção, caos e surreal são a própria realidade dramatizada por Trump. Com a crescente ignorância de eleitores é “mais fácil do que nunca influenciar seus medos e ressentimentos”. As pessoas se importam mais se é conveniente acreditar em algo do que saber se aquilo era fato.
Dessa forma, mais uma vez, entendemos as raízes do negacionismo e fake news, em A Morte da Verdade.
Capítulo 5 – A Apropriação da linguagem:
No ambiente que se descortina a linguagem é usada como “ferramenta para disseminar desconfiança e discórdia”. O que alguns grupos pretendem é controlar como as pessoas se comunicam e como pensam. Para que isso ocorra, há supressão de palavras e a outras são dados novos significados.
No caso, a linguagem é utilizada como “arma para suprimir o pensamento crítico, inflamar a intolerância e sequestrar uma democracia”. Tal metamorfose na linguagem não é nova, já fora constatada na União Soviética, na China maoísta e na Alemanha nazista.
Portanto, negacionismo e fake news não são invenções recentes, como evidenciado em A Morte da verdade.
Capítulo 6 – Filtros, bolhas e tribos:
Defender o próprio território é um instinto primitivo. Pessoas tendem a ser avessas a “examinar cuidadosamente as evidências” e tendem a agir mais emocionalmente do que intelectualmente quando questionadas, ainda mais se as próprias crenças estão envolvidas.
Para os grupos polarizados, o outro lado é sempre prior, daí tolerarem desonestidades e até crueldades, desde que do próprio grupo.
Consequentemente, os grupos se tornam impenetráveis às evidências externas, sobretudo se oriundas das fontes de notícias tradicionais. O líder pode se tornar imune à checagem de fatos dentro dos grupos de seus seguidores.
Capítulo 7 – Déficit de Atenção:
A mesma web que democratizou informações e possibilitou transparência abriga “um lado sinistro que agentes mal-intencionados podem explorar facilmente para espalhar informações errôneas e desinformação, crueldade e preconceito”.
Proliferam o egocentrismo, o isolamento em bolhas ideológicas e a “relativização da verdade”.
Tais grupos buscam apenas argumentos que reforcem as próprias teorias, não há interesse em “examinar evidências empíricas para chegar a conclusões racionais”. Como resultado, há um apelo às emoções primitivas, medo, ódio e raiva.
Capítulo 8 – Propaganda e fake News:
A autora cita Lênin, o qual explicou o uso de terminologia “calculada para provocar o ódio, a aversão e o desprezo”. O objetivo não era convencer, mas “desmobilizar o adversário”.
Há um apelo “para as emoções das pessoas, não para o intelecto”. As práticas incluem: repetição de fórmulas; ataque ao oponente continuamente; esse é rotulado de modo a provocar “reações viscerais do público”.
O capítulo torna então a comentar o livro Origens do totalitarismo, de Hannah Arendt, que analisou o papel essencial da propaganda política para “confundir e manipular as populações da Alemanha Nazista e da Rússia soviética”.
Há o ataque aos canais de informações confiáveis. O público está disposto a acreditar no pior, ainda que absurdo. Esse é bombardeado com informações e distrações e tem a atenção e o foco diminuídos.
Por fim, cansadas, as pessoas param de contestar e se voltam para as próprias vidas. O propósito último é “esgotar o pensamento crítico para aniquilar a verdade”.
Capítulo 9 – A Felicidade dos trolls com a desgraça alheia:
A princípio, o excesso de informação faz o mundo sofrer. As pessoas são levadas a acreditar que é cada um por si, vale a lei da selva, o olho por olho. Pessoas e instituições são atacadas, dentre as quais a imprensa e o judiciário – basta que sejam percebidas como ameaças.
Há sempre um inimigo ou bode expiatório e grande parte da pauta é dominada pela negatividade. As “mentiras, o escárnio, os insultos, as afrontas, e as diatribes raivosas” são as armas da trolagem. Assim, as tradições humanistas são atacadas. Agora vivemos imersos na “ironia pós-moderna”.
Epílogo:
“Orwell temia aqueles que nos privariam de informações” (a ameaça às democracias liberais do ocidente era o estado totalitário da União Soviética), enquanto Huxley temia aqueles que nos dariam tantas que seríamos reduzidos à passividade e ao egoísmo”.
As mentiras de Trump, a violação de normas, o discurso de ódio, o sectarismo, os ataques à imprensa, ao judiciário e ao sistema eleitoral, tudo isso degradou rapidamente os padrões democráticos norte-americanos e se projeta para o exterior, causando danos às vidas de milhões de pessoas.
A autora refere-se ao discurso de despedida de George Washington, em 1796, com destaque para a lembrança do “bem comum”, dos “interesses comuns”, por agregarem os diferentes e por serem “essenciais para a condução de um debate nacional”.
Por fim, é preciso que os cidadãos vigiem e protejam as instituições que são os pilares da democracia, além de “deixar abertos todos os caminhos que levem à verdade”.
Conclusão:
Em síntese, considero o livro bem fundamentado e referenciado, a melhor discussão e explicação que encontrei sobre o fenômeno até agora, apesar de alguns críticos alegarem viés, o que não me parece ser o caso.
Adicionalmente, apesar de centrado em eventos do governo Trump, aplica-se a fenômeno mais abrangente espacialmente e temporalmente, em que ideologias com viés totalitário (de esquerda ou de direita) se apropriam de um discurso de relativização da ciência e dos fatos, manipulando a comunicação e os comportamentos.
Por fim, considero o livro essencial para entender fenômeno atual, inclusive no Brasil. E, repetindo trecho do livro transcrito no parágrafo anterior:
Se queremos vencer o negacionismo, o ódio, o sectarismo e a polarização política destrutiva, superando a negatividade que hoje impera, é preciso “deixar abertos todos os caminhos que levem à verdade”, além de buscar os interesses comuns.
Mais sobre negacionismo e confusão entre realidade e ficção
Veja mais sobre o assunto no post “A confusão entre realidade e ficção e o perigo do negacionismo. Sobre um texto de Umberto Eco“.
O texto aborda a temática de um capítulo do livro Seis passeios pelos bosques da ficção, em que o escritor Umberto Eco fala sobre a confusão entre realidade e ficção. Os efeitos daí decorrentes são discutidos, uma vez que podem produzir impactos na realidade vivida, inclusive a negação da realidade e da ciência.
2 thoughts on “Negacionismo e fake news em A Morte da verdade. Resenha crítica.”