Crônica: Golinho de graça, tem maribondo no pé
Golinho de graça tem maribondo no pé
Se há sabedoria em algum lugar está nos ditos populares: “Quando a esmola é grande o santo desconfia”; ou, “Laranja madura, na beira da estrada, tá bichada Zé ou tem maribondo no pé” – esta última, refrão de um sambinha de Ataulfo Alves. Mas nem sempre nos lembramos dos ditos ou das parábolas em versos de samba, daí nos expomos à sanha dos maribondos.
Em décadas passadas eu repetia uma viagem de doze horas quase semanalmente – intermináveis sacolejos em sonhos atribulados. Em geral, embarcava na rodoviária. Cansado de sofrer, troquei o ônibus semi-leito pelo leito – ao preço de um pouco mais de conforto. E ainda forneciam água mineral em uma pequena caixa de gelo, “self-service free”. Para quem não tinha nada antes, pegava sempre uma garrafinha.
Uma vez cheguei atrasado e tomei o ônibus na estrada, luzes já apagadas, todos dormindo. Embarquei quase anonimamente. Logo na entrada, abri o depósito gelado e tateei o interior. Toquei no que parecia uma caixinha – gelada, não era uma garrafa de água de plástico, mas o que restava – os últimos serão os últimos, em geral. Peguei-a, fui direto para o meu assento espaçoso e estirei as pernas.
Quando a esmola é grande o santo desconfia ou, golinho de graça tem maribondo no pé
Com a ajuda da luz na estrada descobri que o meu presente era um delicioso achocolatado. Tinha um nome de marca, mas não produzirei provas contra mim, por isso chamarei de “Golinho”. Sugado através de um canudinho, o líquido doce e aveludado massageou o meu interior. Aaahhh, como os serviços da empresa estavam melhorando – tomara que não venha aumento da passagem.
Dormi feliz, ao menos até a primeira parada do ônibus, quando alguém começou a gritar: cadê meu Golinho! Pegaram meu Golinho! Eu quero meu Golinho de volta! Aflito, tratei de esconder a prova do crime imprescritível na primeira fresta que encontrei. Àquela altura, não adiantava chorar o leite entornado no leito.
A passageira, irritada como um maribondo, repetiu a ladainha do Cadê meu Golinho! não só naquela parada, mas a cada catabio que atiçava o vespeiro, durante as doze horas de viagem, até o desembarque e até eu me desintegrar – ruborizado – em meio à multidão na rodoviária do destino. Por sorte não tive indigestão, sequer tive coragem de denunciar o meu engano e pedir desculpas, tamanha a vergonha.
Nas viagens seguintes não voltei a apalpar nada diferente de garrafas de água mineral camufladas na penumbra da caixa gelada. Mas, se tivesse encontrado, certamente os dedos escorregariam silentes, para longe da ferroada.