Em um capítulo do livro Seis passeios pelos bosques da ficção, Umberto Eco fala sobre a confusão entre realidade e ficção. Os efeitos daí decorrentes podem produzir impactos na realidade vivida, inclusive a negação da realidade. Assim, falaremos sobre a relação que se estabelece entre o negacionismo e ficção e realidade confundidas.
Negacionismo e ficção e realidade: a confusão pode ter resultados sombrios
Umberto Eco diz que entre ficção e vida, leitor e história, existem complexas relações. Ele afirma: há casos em que ” somos compelidos a trocar a ficção pela vida — a ler a vida como se fosse ficção, a ler a ficção como se fosse a vida”. Os resultados da confusão daí decorrente nem sempre são agradáveis ou inocentes – como se espera da leitura de textos de ficção, podem mesmo ser assustadores.
Os sinais que distinguem o texto de ficção de relatos da realidade nem sempre são visíveis ou identificados pelos leitores
Com olhar crítico, tendemos a avaliar os relatos como verdadeiros ou falsos. E, quando há um sinal ficcional no texto, suspendemos a descrença – entrando no mundo imaginário.
Os textos de ficção em geral contêm sinais que indicam a sua artificialidade, trata-se do paratexto, “mensagens externas que rodeiam o texto”, como é o caso da palavra “romance” na capa do livro, ou de uma fórmula introdutória do tipo “era uma vez” etc.
Porém, às vezes os leitores não identificam esses sinais ficcionais, ou eles podem não ser muito evidentes ou suficientes. Enquanto evidência de que a distinção entre realidade e ficção nem sempre é tão bem definida, Eco cita um incidente histórico, o episódio de pânico em 1940, ligado a um programa radiofônico em que Orson Welles narrava uma invasão de marcianos. Muitos projetaram o conteúdo do programa no mundo real.
Logo, nem sempre a narrativa artificial é identificável por todos e “não existe um sinal incontestável de ficcionalidade”. E se não há indícios de ficcionalidade, em geral “não decidimos entrar num mundo ficcional”, ou seja, avaliaremos a verossimilhança da narrativa, para aceitá-la ou não como real.
Pode ocorrer de alguém passar tanto tempo no mundo de um romance que venha a misturar elementos ficcionais à realidade. E há quem passe a acreditar até mesmo na existência real de determinadas personagens – como pode ser o caso das visitas e romarias a endereços em que certas personagens supostamente teriam vivido.
A percepção individual e a reconstrução do passado
Segundo Humberto Eco, há “muitos motivos para que uma obra de ficção possa ser projetada na realidade”. Ao mesmo tempo, ele ressalta a “nossa tendência a construir a vida como um romance”. Por meio da forma de histórias tendemos a explicar as experiências do cotidiano. Ele cita A.-J. Greimas, segundo o qual a “narratividade é […] o princípio organizador de todo discurso”.
Nesse sentido, o relacionamento perceptual com o mundo se dá em razão de “aceitarmos como verdadeira uma história que nossos ancestrais nos transmitiram”. Esses, por exemplo, relataram que uma árvore “é o produto de um longo processo de crescimento e não cresce da noite para o dia”, e assim confiamos, mesmo sem ter acompanhado o crescimento do vegetal.
Assim, as memórias individual e coletiva (nossos antepassados e livros) se combinam e podemos até confundi-las, como se tivéssemos testemunhado o crescimento da árvore. Como num jogo, a ficção permite que utilizemos nossas faculdades, possibilitando “perceber o mundo e reconstituir o passado”. Então, Eco pergunta: “será que não interpretamos a vida como ficção e, ao interpretar a realidade, não lhe acrescentamos elementos ficcionais?”
A construção de narrativas com fins caluniosos, difamatórios e o surgimento de teorias da conspiração
A construção da história objeto do relato teve início no século XIV, após a aniquilação dos templários. Sucederam-se histórias de ordens secretas, século após século e em determinado ponto certo grupo étnico foi associado às narrativas. Os boatos se espalharam.
O problema prosseguiu, foram construídas narrativas com fins caluniosos, difamatórios e para promover conspirações. Umberto Eco relata o caso de panfletos anticlericais do século XIX, que posteriormente foram adaptados, plagiados, transformados, sucessivamente, com o fim de atacar pessoas ou grupos. Relatos ficcionais ou fragmentos reciclados, como se fossem verdadeiros.
Era a consolidação de uma trama constituída de adaptações e reescritas ao longo de muito tempo, resultando em textos convincentes o bastante para serem levados a sério por muita gente – daí a confusão com a realidade, embora fossem pura ficção.
Em dado momento, um texto derivado do referido enredo caiu nas mãos de Hitler. Foi tomado como fundamento e influenciaria ideias, crenças e uma política de perseguição implacável contra determinados grupos, durante a Segunda Guerra Mundial.
Nem todos ignoram a falsidade das narrativas mas há quem queira viver em romances sombrios
Decerto houve quem percebesse que os escritos anteriormente referidos eram ficcionais. Porém, Umberto Eco comenta: “provas não bastam para aqueles que querem viver num romance de horror”. Sabendo disso, percebe-se a importância de “entender os mecanismos pelos quais a ficção é capaz de moldar a vida”, dada a possibilidade de intrusão da ficção na realidade vivida.
A confusão entre realidade e ficção e o negacionismo: uma relação possível
É oportuno registrar a semelhança entre o relato de Umberto Eco sobre a confusão entre ficção e realidade e acontecimentos atuais que remetem a teorias da conspiração e negacionismos de diversos tipos.
Muitas pessoas não distinguem ficção e realidade, não importam as evidências e continuarão a nutrir os absurdos em que acreditam. Além disso, os artífices de textos de horror não descansam e investem naqueles que se informam exclusivamente em bolhas, comunidades isoladas, constituindo ambientes em que apenas se reforçam as próprias crenças, rechaçando-se todas as evidências contrárias às ideologias do grupo (leia artigo sobre “imunização cognitiva“). Tal dedução não se origina no texto do escritor em comento, mas do cotejamento entre esse e a realidade atual no Brasil e no mundo.
Relembrando o que Umberto Eco diz, “provas não bastam para aqueles que querem viver num romance de horror”.
Assim, não é difícil entender como muitos passam a acreditar e a viver em universos ficcionais sombrios, por vezes bem urdidos, tornando-se incapazes de diferenciar ficção e realidade. Serão presas fáceis dos movimentos negacionistas, a exemplo de grupos antivacinas ou aqueles que negam o aquecimento global. Aplica-se a esses casos o que Umberto Eco chamou de o “sono da razão que gera monstros”.
Em conclusão, cabe lembrar que não estamos livres de reviver tragédias do passado alimentadas por mentes confusas que habitam pesadelos. E, dessa forma, percebemos a importância de entender os mecanismos que explicam a confusão entre realidade e ficção e o negacionismo, além dos malefícios derivados dele.
Mais sobre a negação da ciência e o pensamento negacionista
Não é só a partir do texto de Umberto Eco que inferimos as origens do negacionismo a partir da confusão entre realidade e ficção. Na introdução do livro “A Morte da Verdade” (Michiko Kukatani), encontramos a seguinte citação de Hannah Arendt:
“O súdito ideal dos regimes totalitários é aquele que já não percebe a diferença entre fato e ficção”.
Referências:
ECO, U. Seis passeios pelos bosques da ficção. Companhia das Letras, 1994.
SMITH, A.C.T. 5 Reasons Why People Stick to Their Beliefs, No Matter What. A mind convinced is immune to logic. Here’s why. Disponível em: <https://www.psychologytoday.com/us/blog/true-believers/201603/5-reasons-why-people-stick-their-beliefs-no-matter-what>. Consulta em: 05/02/2023.
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